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Notícia » 21/01/2022

Preservar a Democracia e o Estado de Direito ainda é o melhor caminho a ser trilhado pelo Brasil.*

Artigo escrito por Paulo Roberto Guedes – 19.01.22*
 
Como escreveu o Estadão em seu editorial do último dia 17 (“A resiliência da democracia”), eu também acredito que “nada indica que os brasileiros não estejam dispostos a proteger o regime democrático de ataques cada vez mais audaciosos”.
 
No editorial, ao reconhecer no atual governo, “tantos desmandos, tanta incompetência e tantas manifestações de descaso pelas aflições de milhões de brasileiros”, o Estadão enfatiza o fato de que, em toda a vigência da República Brasileira, jamais se tenha tido “um presidente que tenha rebaixado tanto a instituição que representa”, uma vez que “o deboche, a mentira, a violência e o linguajar chulo, entre outras descargas de falta de decoro”, foram transformados em instrumentos de administração pública. Sem dúvida alguma, Bolsonaro é o pior presidente que o Brasil já teve em toda a sua história.
 
Entretanto, mesmo com o senhor Presidente esforçando-se para destruir as bases que sustentam o Estado Democrático de Direito “e semear a desconfiança entre cidadãos e entre estes e as instituições democráticas” (1), o que restou ainda nos dá a esperança de que a Democracia brasileira prevalecerá. 
 
Como se observa no parágrafo anterior, eu fiz questão de escrever esperança ao invés de certeza, pois particularmente só estarei convencido quando este governo, de fato, aceitar pacificamente o resultado da próxima eleição presidencial, seja qual for o resultado. Com relação a isso, não se deve esquecer que, à semelhança do que fez Trump no Estados Unidos, o presidente Bolsonaro continua contestando o sistema eleitoral brasileiro atual e criando condições para justificar suas reclamações, principalmente caso os resultados das próximas eleições não lhe sejam favoráveis. Ele contesta até o pleito de 2018, no qual foi eleito! Mas Trump fez muito mais, ao incentivar a invasão do Congresso Nacional Norte Americano, o Capitólio, cujo episódio ocorreu exatamente no dia 06/01/2021. É preciso estar vigilantes, pois dadas essas considerações, todo cuidado é pouco.  
 
Mesmo que não tivessem atuado como gostaríamos (em muitos casos deixaram muito a desejar, mas viva a Democracia), não há dúvida que os partidos políticos, o Supremo Tribunal Federal, o Congresso Nacional, a imprensa independente e muitas das instituições vigentes, de uma ou de outra forma, agradando-nos ou não, resistiram às diversas tentativas bolsonaristas e possibilitaram que o Brasil iniciasse o ano de 2022 com algum crédito. Ainda somos um País democrático.
 
A atuação dessas instituições, incluindo-se a maioria dos governos estaduais e municipais, e algumas das principais agências reguladoras, especialmente no que diz respeito ao combate da pandemia do coronavírus, ilustra a atuação de resistência institucional contra as atitudes autoritárias e antidemocráticas de um governo que, além de negacionista, prima pela ignorância e a truculência. Aliás, o recente episódio com a Anvisa (2) exemplifica muito bem a importância de termos instituições independentes. Aqui, não fosse isso, o combate à pandemia teria sido quase impossível.
 
Não há dúvidas, e muitos estudos tem assim demonstrado, que a pandemia, não bastasse a geração de seus próprios malefícios, também fez com que muitos passassem a desacreditar na Democracia, pois são diversos os exemplos de governos que, em face da urgência na tomada de providências, aproveitaram-se para concentrar ainda mais seus poderes. De forma clara e objetiva, estudo feito pela Universidade Católica do Chile, constata que durante a pandemia grande parte dos governos latino americanos usaram indevidamente o estado de emergência para concentrar poder. E, entre outras, conclui: “As principais consequências incluem maior concentração de poder no Executivo, restrição dos direitos humanos, ataques à independência do Judiciário, perseguição a jornalistas e uso crescente das Forças Armadas para tarefas que não são suas” (3). Ressalte-se, também, que um dos exemplos citados no relatório, de “deterioração democrática”, é o Brasil, uma vez que muito se atacou, mais notadamente pelo governo federal e sua turma, os organismos eleitorais.
 
Nos últimos anos, e mais precisamente nos últimos três, houve uma profunda deterioração do Estado brasileiro e, como ilustração, cito apenas cinco exemplos entre os mais recentes: 1º) excesso de medidas provisórias que não cumprem as mínimas exigências institucionais, numa demonstração de desrespeito às regras constitucionais (4), 2º) judicialização do legislativo, e vice-versa, 3º) procuradoria-geral da República que não cumpre com suas obrigações constitucionais, ignora as recomendações da CPI da Covid, protela investigações sobre corrupção e ainda toma decisões escandalosas e despudoradas para favorecer seus grupos de interesses (5), 4º) decisões relativas ao Orçamento Federal quase que exclusivamente nas mãos do Congresso, em particular do “Centrão”, grupo de políticos que, segundo um dos ministros do governo federal, “se gritar pega ladrão, não fica um meu irmão”, 5º) ampliação, de forma inconstitucional, do Fundo Eleitoral (verbas públicas) à favor de pessoas jurídicas de direito privado, como são os partidos políticos (6).
 
O World Justice Project (WJP), organização multidisciplinar independente que, além de promover o conhecimento e a conscientização a respeito do Estado de Direito em todo o mundo, ainda estimula a realização de ações que o desenvolvam, também produz, anualmente, o “Rule of Law Index” (RLI - Índice do Estado de Direito). O último relatório publicado, com base na experiência e nas percepções de mais de 138 mil famílias e 4,2 mil profissionais e especialistas em direito, elaborou o RLI relativo a 2021. Analisando dados de 139 países em todo o mundo, e com notas variando entre 0 e 1, sendo 1 a nota que representa a maior adesão possível ao Estado de Direito, o Brasil, com nota 0,5 e queda de três posições, se comparado com o ranking de 2020, ficou no 77ª lugar. Os números são claros e demonstram que a posição brasileira não é satisfatória. Mesmo comparando-se com países da América Latina e Caribe (32 no total) a situação é muito ruim e o País alcançou apenas a 16ª posição. Ao se analisar os oito fatores principais considerados (Restrições aos Poderes Governamentais, Ausência de Corrupção, Abertura do Governo, Direitos Fundamentais, Ordem e Segurança, Esforço e Fiscalização Regulatória, Justiça Civil e Justiça Criminal), chama a atenção as péssimas posições em Direitos Fundamentais (95ª), Ordem e Segurança (101ª) e Justiça Criminal (112ª). Maiores detalhes poderão ser encontrados no site do WJP (7).
 
Por outro lado, e também para que não passe ‘despercebido’, o relatório da HRW, Humans Right Watch (8) não teve qualquer dúvida ao identificar o presidente Bolsonaro como uma ameaça aos “pilares da democracia”, posto que ele “tentou minar a confiança do sistema eleitoral, a liberdade de expressão (ataques a repórteres e a imprensa de uma forma geral) e a independência do Judiciário”. Ainda com base no relatório da HRW, o jornalista Davi Medeiros do Estadão, em artigo específico (9), destaca as principais falhas do governo federal no combate ao desmatamento da Amazônia e à pandemia. Aliás, quanto à pandemia, a CPI do Senado Federal deixou bastante explicito todas as ações do governo federal, mas principalmente a falta delas a respeito. 
 
Importante ressaltar que, infelizmente, esse comportamento não é apenas do presidente, mas também de muitos dos seus colaboradores que ‘povoam’ o governo federal e grande parte dos demais poderes da República. Se ao tentar desacreditar o sistema eleitoral brasileiro e defender o voto impresso, Bolsonaro disse que “não haveria pleito caso suas propostas (o voto impresso entre elas) não fossem implementadas”, o ministro da Defesa não deixou por menos ao condicionar a realização das eleições de 2022 à implantação do voto impresso. Como escreveu em um de seus editoriais o Estadão (“Surto populista no Congresso”, dia 19 pp), “que o presidente Bolsonaro desconheça ou despreze esses fatos pode parecer natural. Ele é assim mesmo e seria surpreendente se, depois de três anos de um mandato catastrófico, demonstrasse haver aprendido alguma coisa sobre funções presidenciais e governo. Mas é especialmente preocupante observar, na Câmara e no Senado, atitudes semelhantes às do presidente da República. É assustadora a hipótese de dois Poderes – Legislativo e Executivo – igualmente afetados por vírus do voluntarismo, do populismo, da irresponsabilidade e da incompetência”.
 
Apesar de tudo o que aqui já foi escrito, e mesmo considerando o ocorrido em muitos países do mundo (10), quando foram eleitos muitos “aspirantes a ditador”, a manutenção da Democracia continua sendo a melhor hipótese e a mais ‘aceitável’ forma de governo. Isto ocorre inclusive no Brasil, restando claro que a maioria das pessoas que votaram em Bolsonaro não o fizeram porque concordavam com o fechamento do Congresso, do STF, de término da Lava Jato ou com o seu projeto de governo (desconheço que houvesse algum). Mas votaram contra o PT e o Lula e a favor do combate à corrupção. É óbvio que a “decepção” com o governo eleito tem sido refletida nas pesquisas de intenção de votos, quando a cada dia Bolsonaro tem menos adeptos e cada vez mais rejeição.
 
Portanto, caso os brasileiros queiram, de verdade, melhorar o Brasil, será preciso mudar radicalmente a forma de se olhar a política para tentar inverter quase tudo o que se fez nos últimos 15 anos, pois como já disse alguém (desculpe-me mas não me lembro quem foi para lhe dar os devidos créditos), se as pessoas de bem não ligarem para a política, os canalhas e corruptos tomarão conta dela. 
 
É óbvio que os três poderes precisarão estar à altura dos grandes desafios nacionais, deste e dos próximos anos. Mas como tenho insistido, e as circunstâncias atuais me obrigam a repetir, é essencial que o brasileiro perceba quão importante é envolver-se nas discussões políticas e, sem qualquer condescendência, lutar para manter a Democracia e o Estado de Direito. Sem o que tudo ficará muito mais difícil. Fora os governos autoritários, com seus políticos e grupos de conveniência, sejam eles de esquerda, do meio ou de direita!
 
(1) “Nunca o grau de confiança dos cidadãos, entre si e em relação ao governo, foi tão baixo, como apontou um recente estudo do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID)”, escreveu o Estadão dia 17 pp em seu Editorial.
 
Como expressado pelo Estadão “nenhum presidente da República desde a redemocratização pregou e atuou com tanto afinco como Bolsonaro para desacreditar o valor do Supremo Tribunal Federal (STF), do Congresso, dos partidos políticos, da imprensa livre e profissional, da educação, da ciência e da cultura como elementos essenciais para a construção de um país livre, justo e desenvolvido”.
 
(2) “A importância das agências independentes” é o título de outro editorial publicado pelo Estadão neste último dia 17: “De maneira incontestável, a pandemia tem evidenciado a importância das agências reguladoras, em especial da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Sem uma instância técnica independente na área da saúde pública, tendo que depender das disposições do presidente Jair Bolsonaro, talvez o País tivesse começado o ano de 2022 sem dispor ainda de nenhuma vacina contra a covid-19 aprovada. Certamente, sem uma Anvisa independente, não teria sido aprovado nenhum imunizante para crianças e adolescentes”.
 
(3) “Covid abalou democracia em boa parte dos países da região” é o título de artigo publicado pela jornalista Carolina Marins, em 16 pp no Estadão, com base no Relatório “Risco Político da América Latina”, do Centro de Estudos Internacionais da Universidad Católica de Chile (Ceiuc). “A maioria dos governos da região recorreu a estados de emergência para lidar com a pandemia”, afirmou Daniel Zovatto, pesquisador da Universidad Católica de Chile. Maiores detalhes: https://www.hrw.org/pt.
 
(4) “A decadência do Estado brasileiro”, artigo publicado pelo ex-secretário da Receita Federal, Dr. Everardo Maciel, no Estadão dia 06/01/22 (Planejamento governamental não há mais. Tudo é improviso de má qualidade).
 
O atual Procurador Geral da República, através de decisões monocráticas, possibilitou que “procuradores recebessem um valor “extra” de quase meio milhão, em dezembro do ano passado (Estadão de 19.01.22). A própria “Transparência Internacional” criticou essas exageradíssimas e inoportunas remunerações extraordinárias. Escreveu esse a Transparência Internacional: "corrupção institucional é aquela que legaliza privilégio e injustiça". "Desvia o Estado do interesse público e o torna uma máquina de concentração de riquezas e direitos. É uma das raízes mais profundas da enorme desigualdade social brasileira".
 
(5) “Sonambulismo e Fundo Eleitoral” é o título do artigo publicado dia 19 pp no Estadão pelo advogado Modesto Carvalhosa ao comentar a ampliação dos valores do Fundo Eleitoral. Escreveu o Dr. Modesto: “os donos dos partidos e seus apaniguados vão se apropriar de R$ 4,9 bilhões para cooptarem os votos dos eleitores” e, “em vez de compromissos com políticas públicas, os partidos hegemônicos vão entupir de dinheiro os marqueteiros, os cabos eleitorais, os diretores de associações de bairro, os megablogueiros, os influencers, os reis da música sertaneja e do funk, os rappers e os repentistas de aluguel e ainda a imprensa marrom na conquista de votos, na base da mais vulgar ilusão e do mais baixo clientelismo”.
 
(6) Https://worldjusticeproject.org/about-us/overview. As notas e as posições do Brasil em 2021, respectivamente a cada um dos fatores analisados foram: 0,51 e 76ª; 0,43 e 80ª; 0,60 e 41ª; 0,48 e 95ª; 0,64 e 101ª; 0,49 e 75ª; 0,52 e 75ª; e 033 e 112ª. 
 
(7) A Human Rights Watch (HRW) é uma organização internacional não governamental que defende e realiza pesquisas sobre os direitos humanos. A sede da HRW está localizada na cidade de Nova York e a organização mantém escritórios em Amsterdã, Beirute, Berlim, Bruxelas, Chicago, Genebra, Johanesburgo, Londres, Los Angeles, Moscou, Paris, São Francisco, Tóquio, Toronto e Washington DC. Em 2014 abriu sua primeira filial na América do Sul, em São Paulo (Wikipédia). 
 
“O presidente Jair Bolsonaro tentou sabotar medidas de saúde pública destinadas a conter a propagação da pandemia de Covid-19, mas o STF, o Congresso e os governadores defenderam políticas para proteger os brasileiros da doença. O governo Bolsonaro tem enfraquecido a fiscalização ambiental, na prática dando sinal verde às redes criminosas envolvidas no desmatamento ilegal na Amazônia e que usam a intimidação e a violência contra os defensores da flores. O presidente Bolsonaro acusou, sem qualquer prova, indígenas e organizações não governamentais de srem responsáveis pela destruição da floresta. Ele também fez ataques a jornalistas. https://www.hrw.org/pt/world-report/2021/country-chapters/377397. 
 
(8) Jornalista Davi Medeiros, d’O Estado de São Paulo, dia 13 de janeiro de 2022: “Bolsonaro tentou minar sistema eleitoral e judiciário, diz relatório da Humans Right Watch”. “Fazendo um apanhado dos fatos que levaram à escalada de tensão entre os poderes Judiciário e Executivo em 2021, o relatório lembra que o ápice desse enfrentamento ocorreu em setembro, quando o presidente Bolsonaro, durante atos relativos ao 7 de Setembro, ameaçou demitir e descumprir decisões do ministro Alexandre de Moraes”.
 
(9) “O declínio da democracia é ocasionado por forças complexas. Globalização e transformação econômica deixaram muita gente para trás, e uma enorme divisão cultural emergiu entre profissionais com alto nível de formação que vivem nas grandes cidades e moradores de localidades menores, com valores mais tradicionais. O advento da internet enfraqueceu o controle das elites sobre a informação – nós sempre discordamos a respeito de valores, mas agora vivemos em universos de fato separados. E o desejo de pertencimento e a afirmação de dignidade própria são com frequência forças mais poderosas do que o auto interesse econômico”, escreveu Francis Fukuyama em artigo publicado pelo Estadão no dia 6 pp. “O dia em que o mundo se afastou de nós. Ataque ao Capitólio precisa ser visto como pano de fundo da crise global da democracia liberal”
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